segunda-feira, 6 de junho de 2011

David Crocket - Miguel Sousa Tavares (exc)

Eternamente

"E escrevi o teu nome e o teu número de telefone numa página da agenda do mês de

Fevereiro. E, ao escrevê-lo, sabia que era uma despedida, mas todo o mês de Março nos

arrastámos na despedida, como caranguejos na maré vazia. Sem ti, lancei outras raízes,

construí pátios e terraços, fontes cujo som deveria apagar todos os silêncios, plantei um

pomar com cheiro a damasco, mandei fazer um banco de cal à roda de uma árvore para

olhar as estrelas no céu, um caminho no meio do olival por onde o luar pousaria à noite,

abóbadas de tijolo imaginadas pelo mais sábio dos arquitectos e até teias de aranha

suspensas do tecto, como se vigiassem a passagem do tempo. Nada disso tu viste, nada te

contei, nada é teu.

E foi assim que descobri que todas as coisas continuam para sempre, como um rio

que corre ininterruptamente para o mar, por mais que façam para o deter.

Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como evidentes.

Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos; acredita na integridade da

água, do vento, das estrelas. Eu acredito na continuidade das coisas que amamos, acredito

que para sempre ouviremos o som da água no rio onde tantas vezes mergulhámos a cara,

para sempre passaremos pela sombra da árvore onde tantas vezes parámos, para sempre

seremos a brisa que entra e passeia pela casa, para sempre deslizaremos através do silêncio

das noites quietas em que tantas vezes olhámos o céu e interrogámos o seu sentido.

E a tua voz ouço-a agora, vinda de longe, como o som do mar imaginado dentro de

um búzio. Vejo-te através da espuma quebrada na areia das praias, num mar de Setembro,

com cheiro a algas e a iodo. E de novo acredito que nada do que é importante se perde

verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos

outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram,

todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia

ser meu para sempre."


2 comentários:

Anônimo disse...

O excerto é fantástico. Gosto muito do blog parabéns

mitra_g_dance disse...

as linhas que sublinhaste é o que mais te toca